Você tem cultura?
Outro dia ouvi uma pessoa dizer que “Maria não tinha cultura”, era “ignorante dos fatos básicos da política, economia e literatura”. Uma semana depois, no museu onde trabalho, conversava com alunos sobre “a cultura dos índios Apinayé de Goiás”, que havia estudado de 1962 até 1976 quando publiquei um livro sobre eles (Um mundo dividido). Refletindo sobre os dois usos de uma mesma palavra, decidi que essa era a melhor forma de discutir a ideia ou o conceito de cultura tal como nós, estudantes da sociedade, a concebemos. Ou, melhor ainda, apresentar algumas noções sobre a cultura e o que ela quer dizer não como uma simples palavra, mas como uma categoria intelectual: um conceito que pode nos ajudar a entender melhor o que acontece no mundo em nossa volta.
Retomemos os exemplos mencionados porque eles encerram os dois sentidos mais comuns da palavra. No primeiro, usa-se cultura como sinônimo de sofisticação, de sabedoria, de educação no sentido restrito do termo. Quer dizer, quando falamos que “Maria não tem cultura!”, e que “João é culto”, estamos nos referindo a um certo estado educacional destas pessoas querendo indicar com isso sua capacidade de compreender ou organizar certos dados e situações. Cultura aqui é equivalente a volume de leituras, a controle de informações, a títulos universitários e chega até mesmo a ser confundida com inteligência, como se a habilidade para realizar certas operações mentais e lógicas (que definem de fato a inteligência) fosse algo a ser medido ou arbitrado pelo número de livros que uma pessoa leu, as línguas que pode falar, ou os quadros e pintores que pode, de memória, enumerar. Como uma espécie de prova desta associação, temos o velho ditado informando sabiamente que “cultura não traz discernimento”. . . ou inteligência, conforme estou discutindo aqui.
Neste sentido, cultura é uma palavra usada para classificar as pessoas e, às vezes, grupos sociais, servindo como uma arma discriminatória contra algum sexo, idade (“as gerações mais novas são incultas”), etnia (“os pretos não têm cultura”) ou mesmo sociedades inteiras, quando se diz que “os franceses são cultos e civilizados” em oposição aos americanos, que são “ignorantes e grosseiros”. Do mesmo modo é comum ouvir-se referências à humanidade, cujos valores seguem tradições diferentes e desconhecidas, como a dos índios, como sendo sociedades que estão “na Idade da Pedra” e se encontram em “estágio cultural muito atrasado!”. A palavra cultura, enquanto categoria do senso comum, ocupa como vemos um importante lugar no nosso acervo conceitual, ficando lado a lado de outras, cujo uso na vida quotidiana é também muito comum. Estou me lembrando da palavra “personalidade” que, tal como ocorre com a palavra “cultura”, penetra o nosso vocabulário com dois sentidos bem diferenciados. No campo da Psicologia, personalidade define o conjunto de traços que caracterizam todos os seres humanos. Ê aquilo que singulariza todos e cada um de nós como uma pessoa diferente, com interesses, capacidades e emoções particulares. Mas na vida diária, personalidade é usada como um marco para algo desejável e invejável de uma pessoa. Assim, certas pessoas teriam “personalidade”, outras não! É comum dizer que “João tem personalidade” quando, de fato, se quer indicar que “João tem magnetismo”, sendo uma pessoa “com presença”. Do mesmo modo, dizer que “João não tem personalidade” quer apenas dizer que ele não é uma pessoa atraente ou inteligente. Mas, no fundo, todos temos personalidade, embora nem todos possamos ser pessoas belas ou magnetizadoras como um artista de novela das oito! Mesmo uma pessoa “sem personalidade” tem, paradoxalmente, personalidade na medida em que ocupa um espaço social e físico e tem desejos e necessidades. Pode ser uma pessoa sumamente apagada, mas ser assim é precisamente o traço marcante de sua personalidade. No caso do conceito de cultura ocorre o mesmo, embora nem todos saibam disso. De fato, quando um antropólogo social fala em “cultura”, ele usa a palavra como um conceito-chave para a interpretação da vida social. Porque, para nós, “cultura” não é simplesmente um referente que marca uma hierarquia de “civilização”, mas a maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa.
Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de certas situações. Por outro lado, a cultura não é um código que se escolhe simplesmente. É algo que está dentro e fora de cada um de nós, como o entendimento do jogo de futebol também, a ação de cada jogador, juiz, bandeirinha torcida. Quer dizer, as regras que formam a cultura (ou a cultura como regra) são algo que permite relacionar indivíduos entre si e o próprio grupo com o ambiente onde vive. Em geral, pensamos a cultura corno algo individual que as pessoas inventam, modificam e acrescentam na medida de sua criatividade e poder. Daí falarmos que Fulano é mais culto que Sicrano e distinguirmos formas de “cultura” supostamente mais avançadas ou preferidas que outras. Falamos então em “alta cultura” e “baixa cultura” ou “cultura popular”, preferindo naturalmente as formas sofisticadas que se confundem com a própria ideia de cultura.
Assim, teríamos a cultura e culturas particulares e adjetivadas (popular, indígena, nordestina, de classe baixa etc.) como formas secundárias incompletas e inferiores de vida social. Mas a verdade é que todas as formas culturais ou todas as “subculturas” de uma sociedade são equivalentes e, em geral, aprofundam algum aspecto importante que não pode ser esgotado completamente por uma outra “subcultura”. Quer dizer, existem gêneros de cultura que são equivalentes a diferentes modos de sentir, celebrar, pensar e atuar sobre o mundo e esses gêneros podem estar associados a certos segmentos sociais.
O problema é que sempre que nos aproximamos de alguma forma de comportamento e de pensamento diferente, tendemos a classificar a diferença hierarquicamente, o que é uma forma de excluí-la. Um outro modo de perceber e enfrentar a diferença cultural é tomar a diferença como um desvio, deixando de buscar seu papel numa totalidade. Desta forma, podemos ver o carnaval corno algo desviante de uma festa religiosa, sem nos darmos conta de que as festas religiosas e o carnaval guardam uma profunda relação de complementaridade Realmente, se no terreno da festa religiosa somos marcados pelo mais profundo comedimento e respeito pelo foco no “outro mundo”, é porque no carnaval podemos nos apresentar realizando o justo oposto. Assim, o carnavalesco e o religioso não podem ser classificados em termos de superior ou inferior ou como articulados a uma “cultura autêntica” e superior, mas devem ser vistos nas suas relações que são complementares. O que significa dizer que tanto há cultura no carnaval quanto na procissão e nas festas cívicas, pois que cada uma delas é um código capaz de permitir um julgamento e uma atuação sobre o mundo social no Brasil. Como disse uma vez, essas festas nos revelam leituras da sociedade brasileira por nós mesmos e é nesta direção que devemos discutir o conteúdo e a forma de cada cultura ou subcultura em uma sociedade.
O problema é que sempre que nos aproximamos de alguma forma de comportamento e de pensamento diferente, tendemos a classificar a diferença hierarquicamente, o que é uma forma de excluí-la. Um outro modo de perceber e enfrentar a diferença cultural é tomar a diferença como um desvio, deixando de buscar seu papel numa totalidade. Desta forma, podemos ver o carnaval corno algo desviante de uma festa religiosa, sem nos darmos conta de que as festas religiosas e o carnaval guardam uma profunda relação de complementaridade Realmente, se no terreno da festa religiosa somos marcados pelo mais profundo comedimento e respeito pelo foco no “outro mundo”, é porque no carnaval podemos nos apresentar realizando o justo oposto. Assim, o carnavalesco e o religioso não podem ser classificados em termos de superior ou inferior ou como articulados a uma “cultura autêntica” e superior, mas devem ser vistos nas suas relações que são complementares. O que significa dizer que tanto há cultura no carnaval quanto na procissão e nas festas cívicas, pois que cada uma delas é um código capaz de permitir um julgamento e uma atuação sobre o mundo social no Brasil. Como disse uma vez, essas festas nos revelam leituras da sociedade brasileira por nós mesmos e é nesta direção que devemos discutir o conteúdo e a forma de cada cultura ou subcultura em uma sociedade.
No sentido antropológico, portanto, a cultura é um conjunto de regras que nos diz como o mundo pode e deve ser classificado. Ela, como os textos teatrais, não pode prever completamente como iremos nos sentir em cada papel que devemos ou temos necessariamente que desempenhar, mas indica maneiras gerais e exemplos de como pessoas que viveram antes de nós os desempenharam. Mas isso não impede, conforme sabemos, emoções. Do mesmo modo que um jogo de futebol com suas regras fixas não impede renovadas emoções em cada partida. É que as regras apenas indicam os limites e apontam os elementos e suas combinações explícitas. O seu funcionamento e, sobretudo, o modo pelo qual elas engendram novas combinações em situações concretas são algo que só a realidade pode dizer. Porque embora cada cultura contenha um conjunto finito de regras, suas possibilidades de atualização, expressão e reação em situações concretas são infinitas.
Apresentada a assim, a cultura parece ser um bom instrumento para compreender as diferenças entre os homens e as sociedades. Elas não seriam dadas, de urna vez por todas, através de um meio geográfico ou de uma raça, como diziam os estudiosos do passado, mas em diferentes configurações ou relações que cada sociedade estabelece no decorrer de sua história. Mas é importante acentuar que a base dessas configurações é sempre um repertório comum de potencialidades. Certas sociedades desenvolveram algumas dessas potencialidades mais e melhor do que outras, mas isso não significa que sejam mais pervertidas ou mais adiantadas.
O que isso parece indicar é, antes de mais nada, o enorme potencial que cada cultura encerra como elemento plástico capaz de receber as variações e motivações dos seus membros, bem corno os desafios externos. Nosso sistema caminhou na direção de um poderoso controle sobre a natureza, mas isso é apenas um traço entre muitos outros. Há sociedades na Amazônia onde o controle da natureza é muito pobre, mas existe uma enorme sabedoria relativa ao equilíbrio entre os homens e os grupos cujos interesses são divergentes. O respeito pela vida que todas as sociedades indígenas nos apresentam de modo tão vivo, pois que os animais são seres incluídos na formação e discussão de sua moralidade e sistema político, parece se constituir não em exemplo de ignorância e indigência lógica, mas em verdadeira lição, pois respeitar a vida deve certamente incluir toda a vida e não apenas a vida humana. Hoje estamos mais conscientes do preço que pagamos pela exploração desenfreada do mundo natural sem a necessária moralidade que nos liga inevitavelmente às plantas, aos animais, aos rios e aos mares.
O que isso parece indicar é, antes de mais nada, o enorme potencial que cada cultura encerra como elemento plástico capaz de receber as variações e motivações dos seus membros, bem corno os desafios externos. Nosso sistema caminhou na direção de um poderoso controle sobre a natureza, mas isso é apenas um traço entre muitos outros. Há sociedades na Amazônia onde o controle da natureza é muito pobre, mas existe uma enorme sabedoria relativa ao equilíbrio entre os homens e os grupos cujos interesses são divergentes. O respeito pela vida que todas as sociedades indígenas nos apresentam de modo tão vivo, pois que os animais são seres incluídos na formação e discussão de sua moralidade e sistema político, parece se constituir não em exemplo de ignorância e indigência lógica, mas em verdadeira lição, pois respeitar a vida deve certamente incluir toda a vida e não apenas a vida humana. Hoje estamos mais conscientes do preço que pagamos pela exploração desenfreada do mundo natural sem a necessária moralidade que nos liga inevitavelmente às plantas, aos animais, aos rios e aos mares.
Realmente, pela escala dessas sociedades tribais, somos uma sociedade de bárbaros, incapazes de compreender o significado profundo dos elos que nos ligam com todo o mundo em escala global. Pois é assim que pensam os índios e por isso suas histórias são povoadas de animais que falam e homens que se transformam em animais. Conosco, são as máquinas que tomam esse lugar.
O conceito de cultura, ou a cultura como conceito, então, permite uma perspectiva mais consciente de nós mesmos. Precisamente porque diz que não há homens sem cultura e permite comparar culturas e configurações culturais como entidades iguais, deixando de estabelecer hierarquias em que inevitavelmente existiriam sociedades superiores e inferiores. Mesmo diante de formas culturais aparentemente irracionais, cruéis ou pervertidas, existe o homem e entendê-las — ainda que seja para evitá-las, como fazemos com o crime — é uma tarefa inevitável que faz parte da condição do ser humano e viver num universo marcado e demarcado pela cultura. Em outras palavras, a cultura permite traduzir melhor a diferença entre nós e os outros e, assim fazendo, resgatar a nossa humanidade no outro e a do outro em nós mesmos. Num mundo como o nosso, tão pequeno pela comunicação em escala planetária, isso me parece muito importante. Porque já não se trata somente de fabricar mais e mais automóveis, conforme pensávamos em 1950, mas desenvolver nossa capacidade de enxergar melhores caminhos para os pobres, os marginais e os oprimidos. E isso só se faz com uma atitude aberta para as formas e configurações sociais que, como revela o conceito de cultura, estão dentro e fora de nós.
O conceito de cultura, ou a cultura como conceito, então, permite uma perspectiva mais consciente de nós mesmos. Precisamente porque diz que não há homens sem cultura e permite comparar culturas e configurações culturais como entidades iguais, deixando de estabelecer hierarquias em que inevitavelmente existiriam sociedades superiores e inferiores. Mesmo diante de formas culturais aparentemente irracionais, cruéis ou pervertidas, existe o homem e entendê-las — ainda que seja para evitá-las, como fazemos com o crime — é uma tarefa inevitável que faz parte da condição do ser humano e viver num universo marcado e demarcado pela cultura. Em outras palavras, a cultura permite traduzir melhor a diferença entre nós e os outros e, assim fazendo, resgatar a nossa humanidade no outro e a do outro em nós mesmos. Num mundo como o nosso, tão pequeno pela comunicação em escala planetária, isso me parece muito importante. Porque já não se trata somente de fabricar mais e mais automóveis, conforme pensávamos em 1950, mas desenvolver nossa capacidade de enxergar melhores caminhos para os pobres, os marginais e os oprimidos. E isso só se faz com uma atitude aberta para as formas e configurações sociais que, como revela o conceito de cultura, estão dentro e fora de nós.
Num país corno o nosso, onde as formas hierarquizantes de classificação cultural sempre foram dominantes, onde a elite sempre esteve disposta a autoflagelar-se dizendo que nós não temos uma cultura, nada mais saudável do que esse exercício antropológico de descobrir que a fórmula negativa — esse dizer que não temos cultura — é paradoxalmente, um modo de agir cultural que deve ser visto, pesado e talvez substituído por uma fórmula mais confiante no nosso futuro e nas nossas potencialidades.
(Roberto DaMatta – Jornal da Embratel, edição especial. setembro de 1981)
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